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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

FELICIDADE CLANDESTINA


Para vocês,um presente nesta segunda-feira;um magistral conto de Clarice Lispector.
Deliciem-se!

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos

achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do

busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias

gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de

pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal

da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde

morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra

bordadíssima palavras como "data natalícia” e “saudade” .

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,

chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que

éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.

Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler,

eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lheemprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma

tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de

Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com

ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses.

Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o

emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu

não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me

traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava

num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando

bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina,

e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas

em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a

andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.

Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias

seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me

esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de

livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua

casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro

ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu

como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se

repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo

indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já

começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.

Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer

esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às

vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio

de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a

olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e

silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a

aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a

nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco

elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar

entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com

enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você

nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia

ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a

potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à

porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se

refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora

mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser."

Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é

tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro

na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando

como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com

as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar

em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração

pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para

depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas

maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo

comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,

abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela

coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina

para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia

orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,

sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu

amante.



1920


- Nasce Clarice Lispector a 10 de dezembro em Tchetchelnik, aldeia da Ucrânia, filha de Marieta e Pedro Lispector.



• 1921

- Clarice Lispector chega ao Brasil com dois meses de idade, razão pela qual se considera muito mais brasileira do que russa,e vai residir em Maceió.



• 1924

- A família se transfere para Recife, onde Clarice passa a sua infância, em um prédio da Praça Maciel Pinheiro. Estuda no Grupo Escolar João Barbalho, passando daí para o Ginásio Pernambucano.



• 1930

- Falece sua mãe.



• 1933

- Pedro Lispector transfere-se com a família para o Rio de Janeiro, passando Clarice a estudar no Colégio Sílvio Leite. Nesse período lê bastante, não só a literatura romântica de Delly, como também as obras de escritores consagrados como Júlio Dinis, Eça de Queirós, José de Alencar e Dostoiewski.



• 1938

- Prepara-se, no Colégio Andrews, para ingressar na Faculdade de Direito.

- Nessa época, freqüenta uma pequena biblioteca de aluguel na Rua Rodrigo Silva, onde escolhe os livros pelo título. Descobre, ocasionalmente, a obra de Katherine Mansfield.



• 1940

- Entra para a Faculdade Nacional de Direito.

- Falece seu pai.



• 1941

- Redatora da Agência Nacional, trabalha ao lado de Lúcio Cardoso, que se tornaria um de seus melhores amigos.



• 1942

- Enquanto cursa a faculdade, começa a escrever seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem.



• 1943

- Trabalha em A Noite como redatora, indo depois para o Diário da Tarde, onde faz uma página feminina assinada por llka Soares.

- Naturaliza-se brasileira.

- Casa-se com o diplomata Mauri Gurgel Valente, em 23 janeiro.



• 1944

- Acompanha o marido a Nápoles. Nessa cidade presta ajuda a um hospital de soldados brasileiros.

- Começa a escrever O Lustre.

- Publica o primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, pela editora A Noite. Neste mesmo ano o romance é laureado com o PrêmioGraça Aranha.



• 1946

- Publica, pela Agir, O Lustre.



• 1946

- Reside em Berna, de onde viaja para a Espanha.



• 1949

- França e Itália. Conhece Ungaretti e De Chirico.



• 1949

- Em 10 de setembro nasce, em Berna, seu primeiro filho, Pedro.



• 1950

- Regressa ao Rio de Janeiro.



• 1951

- Passa seis meses em Torkway, na Inglaterra, onde faz as primeiras anotações para A Maçã no Escuro.



• 1952

- Publica Alguns Contos.

- Escreve a crônica "Entre Mulheres" para a revista Comício, sob o pseudônimo de Teresa Quadros.



• 1952-1959

- Reside em Washington.



• 1953

- Em 10 fevereiro, nasce o segundo filho, Paulo.



• 1958-1959

- Colabora para a revista Senhor.



• 1959

- Separa-se do marido e passa a residir definitivamente, com os filhos, no Rio de Janeiro.



• 1959-1960

- Assina, sob o pseudônimo de Helen Palmer, a coluna "Feira de Utilidades", publicada no Correio da Manhã.



• 1962

- Recebe o Prêmio Carmem Dolores pelo romance A Maçã no Escuro.



• 1963

- Pronuncia, no Texas, a conferência "Literatura Atual no Brasil".



• 1967

- Fica gravemente ferida por causa de um incêndio em seu apartamento.



• 1967-1973

- Escreve crônica semanal, aos sábados, para o Jornal do Brasil.



• 1968

- Passa a integrar a Ordem da Calunga, da Campanha Nacional da Criança.



• 1969

- Recebe o prêmio Golfinho de Ouro.



• 1975

- Participa do 1º Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, com o texto "Literature and Magic".



• 1977

- Publica uma série de entrevistas em Fatos e Fotos, sob o título de "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector".

- Falece em 9 de dezembro.









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