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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

PRECE DO BRASILEIRO



Meu Deus,

só me lembro de vós para pedir,

mas de qualquer modo sempre é uma lembrança.

Desculpai vosso filho, que se veste

de humildade e esperança

e vos suplica: Olhai para o Nordeste

onde há fome, Senhor, e desespero

rodando nas estradas

entre esqueletos de animais.



Em Iguatu, Parambu, Baturité,

Tauá

(vogais tão fortes não chegam até vós?)

vede as espectrais

procissões de braços estendidos,

assaltos, sobressaltos, armazéns

arrombados e – o que é pior – não tinham nada.

Fazei, Senhor, chover a chuva boa,

aquela que, florindo e reflorindo, soa

qual cantata de Bach em vossa glória

e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca,

ao pobre sertanejo destruído

no que tem de mais doce e mais cruel:

a terra estorricada sempre amada.



Fazei chover, Senhor, e já! numa certeira

ordem às nuvens. Ou desobedecem

a vosso mando, as revoltosas? Fosse eu Vieira

(o padre) e vos diria, malcriado,

muitas e boas... mas sou vosso fã

omisso, pecador, bem brasileiro.

Comigo é na macia, no veludo/lã

e matreiro, rogo, não

ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre)

mas ao Deus que Bandeira, com carinho

botou em verso: “meu Jesus Cristinho”.

E mudo até o tratamento: por que vós,

tão gravata-e-colarinho, tão

vossa excelência?

O você comunica muito mais

e se agora o trato de você,

ficamos perto, vamos papeando

como dois camaradas bem legais,

um, puro; o outro, aquela coisa,

quase que maldito

mas amizade é isso mesmo: salta

o vale, o muro, o abismo do infinito.

Meu querido Jesus, que é que há?

Faz sentido deixar o Ceará

sofrer em ciclo a mesma eterna pena?



E você me responde suavemente:

Escute, meu cronista e meu cristão:

essa cantiga é antiga

e de tão velha não entoa não.

Você tem a Sudene abrindo frentes

de trabalho de emergência, antes fechadas.

Tem a ONU, que manda toneladas

de pacotes à espera de haver fome.

Tudo está preparado para a cena

dolorosamente repetida

no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.



No entanto, você sabe,

você lê os jornais, vai ao cinema,

até um livro de vez em quando lê

se o Buzaid não criar problema:

Em Israel, minha primeira pátria

(a segunda é a Bahia)

desertos se transformam em jardins

em pomares, em fontes, em riquezas.

E não é por milagre:

obra do homem e da tecnologia.

Você, meu brasileiro,

não acha que já é tempo de aprender

e de atender àquela brava gente

fugindo à caridade de ocasião

e ao vício de esperar tudo da oração?



Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.

Fiquei, confesso, muito encabulado,

mas pedir, pedir sempre ao bom amigo

é balda que carrego aqui comigo.

Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.

Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar

noutro caso, mais sério, mais urgente.



Escute aqui, ó irmãozinho.

Meu coração, agora, tá no México

batendo pelos músculos de Gérson,

a unha de Tostão, a ronha de Pelé,

a cuca de Zagalo, a calma de Leão

e tudo mais que liga o meu país

e uma bola no campo e uma taça de ouro.

Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça

sem milagres ou com ele nos pertença

para sempre, assim seja... Do contrário

ficará a Nação tão malincônica,

tão roubada em seu sonho e seu ardor

que nem sei como feche a minha crônica.



30-5-1970







Carlos Drummond de Andrade,poeta brasileiro


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